Nosce te Ipsum

"Um quadro só vive para quem o olha" - Pablo Picasso

(Nosce te Ipsum)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Rua Amazonas - No repeat em 2010



Série:

SINAL VERMELHO
-
PELAS RUAS DE UMA FORTALEZA
-
SOLIDÃO







RUA AMAZONAS

- No repeat em 2010.


O celular descarregou. Só teve carga suficiente para me acordar, era o único despertador. Por isso não o levei. Dei bom dia para o dia, essas coisas que se fazem pela manhã. Coloquei a calça e a blusa manga longa preta, e caminhei por setembro. Fui pra Pasárgada, Bandeira dominical.

Segui com New Year’s Day no repeat do meu MP4, e ainda lembrei que já havia MP não sei das quantas, precisava fazer um download do século vinte e um.

Não pensei sobre o sol, nem sobre as pessoas que passavam por ali, pensava apenas em minha Pasárgada. Quando entrei na floresta. Era a famosa Rua Amazonas. Ainda na descida, não me esqueço, das casas de famílias, das pessoas que viandavam por ali, da mãe grávida e com uma criança de colo que passou por mim. Ainda avistei o bar do pai de um amigo de infância de meu tio, e lá ele estava com muita gente e com seu bar. E foi debaixo de uma casa com uma árvore que botou seus galhos pra fora do muro só pra assistir:

Vinham os três de bicicleta e o MP4 cantava “I will begin again... I will begin again[1], era uma bela voz, como diria meu querido latim.

Vi mas não olhei. Os três tinham aquele jeitinho brasileiro. E estavam de bicicletas.
“Passa o celular” “não tenho nada” “Dá logo um tiro nele”, disse o outro. “Bóra, passa o celular” “tem medo de levar um tiro não?” E depois que percebeu que eu estava sem nada, pegou o MP4 que foi embora cantando “and gold is the reason for the wars we wage”.

And gold is the reason for the wars we wage.[2]

Tinham rostos jovens, os três. Não consegui falar nada, mas eu quis. Quis dizer “Pô, cara vai estudar! Pra quê fazer isso?” sim, eu quis dizer “é isso que vocês querem da vida? Atira! Vai, atira! Mata, e aí? Mata um cara hoje e leva um tiro amanhã. É preso, E aí? A mãe e o pai de vocês gostam disso? O que eles pensam sobre isso? Vão arruinar a vida de vocês aqui? Vai! Atira! E sai na porra dessa bicicleta! Atira! Eu estudo. O que vocês deveriam fazer! Não tô por aí roubando, mesmo sendo pobre. Vocês podiam usar essas bicicletas pra esporte e não pra isso. Atira!” sim, como eu quis dizer “E depois? Quando quiserem ter uma vida bacana? E aí? Vão dormir todos os dias com o peso de tanta morte na cabeça. E aí? Atira! O que as futuras namoradas de vocês vão pensar? É isso que vão ensinar pros seus filhos? Vai, atira!” eu não disse. Meu silêncio era o conformismo de todo um povo. E o povo da rua apenas olhou, e é óbvio que ficou comentando o resto do dia sobre o perigo que tá a rua, plenas dez horas da manhã.

Eles foram embora e não atiraram. Eu que atirei neles. O meu silêncio pode ter sido um gatilho apertado duma pistola qualquer que vai estourar os miolos de algum deles. Não disse tudo que queria... A única coisa que consegui dizer um deles escutou, os outros saíram rápido “cara, vai estudar”, e esse que escutou, abaixou a cabeça e seguiu, pude ver a tristeza como Bandeira de sua cara. Ele não iria pra Pasárgada, foi com os outros dois pela Rua Papi Júnior.

Eu segui meu caminho. Não tinha mais minhas músicas. O MP4 era uma placa de som na minha CPU, foi embora e não era onboard, mas há ainda som na minha cabeça, esse era onboard. E eu segui ouvindo a música que estava depois de New Year’s Day na lista, era Pride e não parava “In the name of Love... What more in the name of Love?”.

In the name of Love… What more in the name of love?[3]

  Ainda olhei pra trás, no momento em que virei para outra rua, e vi aqueles galhos-platéia. Lembrei que estava saindo da floresta, realmente uma selva. Já diria Zaratustra que é certo que sou uma selva e uma noite de escuras árvores... E eu não vi as sendas de rosas sob os ciprestes.


[1] Eu começarei de novo.
[2] E ouro é a razão para as guerras que nós combatemos.
[3] Em nome do amor... O que mais em nome do amor?


(Por Marcos P. S. Caetano)


Fortaleza, 2010.


Palavra da Vez:

"Pasárgada ou Pasárgadas[1] (em persa: پاسارگاد‎, transl. Pāsārgād; em grego: Πασαργάδες; em latimPasargadae) era uma cidade da antiga Pérsia, atualmente um sítio arqueológico na província de Fars, no Irã, situado 87 quilômetros a nordeste de Persépolis. Foi a primeira capital da Pérsia Aqueménida, no tempo de Ciro II da Pérsia, e coexistiu com as demais, dado que era costume persa manter várias capitais em simultâneo, em função da vastidão do seu império: PersépolisEcbátanaSusa ou Sardes. É hoje um Patrimônio Mundial da Unesco. (...)"

Referência no célebre poema de Manuel Bandeira: "Vou-me embora pra Pasárgada".





U2 - New Year's Day






3 comentários:

  1. Putz!
    Altos textos; grande desenvoltura. (e grande sonzeira)
    Abraços!

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  2. Valha essa história é conhecida. ^^

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  3. Que trama! gostei do texto.
    U2 então... eu amo!

    ah, li teu comentário, fico sempre lisonjeada com seus elogios, vindo de alguém com sua sensibilidade vale muito, viu?

    ah² voltei a postar, agora usando meu nome, rs andei afastada do blog... desilusões, desilusões...
    mas agente supera, né?

    beijos

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