
"Daniel Riva e os Exércitos de Escarro"
Oh, baby, it's cryin' time, oh, baby, I've got to fly
Enquanto aquele careca sentava-se a minha frente, assim cantavam os quatro adolescentes que também se aconchegavam numa mesinha próxima. Pareciam daqueles que têm o sonho de formar bandas de rock, e dois com baquetas de bateria, além da letra de Four Sticks na camisa de um deles, ainda com John Bonham como estampa. Eram quatro baquetas e o Led Zeppelin martelando a bateria do meu pensamento. Um deles seguia como se fosse Plant misturado ao MP4 que escutavam.
Got to try to find a way, got to try to get away
Eu tinha mesmo de achar um caminho. Ele não tinha cabelo, mas se tivesse já deveriam ser grisalhos, não sei como conseguia manter um bom aspecto físico fumando tanto, André deveria ter pra lá dos seus quarenta anos. Quase cinqüenta? Talvez tivesse idade para ser meu pai.
- Não pensei que fosse entrar em contato comigo, jovem. Então, o que quer?
A sem-cerimônia de certo me surpreendeu principalmente de alguém como ele, mas depois das últimas barbaridades que ouvi, já deveria ter me acostumado a não me surpreender.
'cause you know, I gotta get away from you, babe
- Você me deu seu cartão, disse que eu poderia entrar em contato. – Eu quase disse como a música.
- É a mulher, não é?
Oh, baby, the river's red, aw, baby, in my head
There's a funny feeling goin' on
I don't think I can hold out long
- Sim, é ela. Depois do que você me falou, fiquei pensando. Tentei algo com ela, mas não foi o que eu pensava.
Ele ainda gargalhou quando eu disse aquilo, pediu tequila, não entendi, estávamos numa cafeteria, mas ele pediu tequila. Nem prestei atenção no garçom, a gargalhada dele me prendeu no escuro daquela garganta, eu pude me transportar para as cordas vocais e vibrar como elas.
- Logo imaginei. Mas ao menos você fez alguma coisa. Eu lhe falei, só assim mesmo. Porém, você continua sem conhecê-la. É ridículo o modo como você a trata, e também como me falou que aquele idiota do namorado o faz. Santa? Só se for do pau oco.
- Ei! Não fale assim! Respeite-a, e a mim também. Não acredito nessas coisas que você disse! Eu a conheço muito bem, somos amigos de infância!
Gargalhou novamente, e bebeu um pouco da tequila, nem me atentei quando o copo chegou, mas estava descendo pela garganta após a gargalhada.
- Olhe para você! Um tolo! Parece um daqueles idiotas de séculos atrás! Isso que tem entre as pernas é um pau ou o quê? Já sabe usar, não sabe? Quando você esfregar essa coisa inútil na cara dela vai entender todos os traumas da infância dela! Aí sim você vai conhecê-la! Eu em uma noite conheceria mais que você! Gostos e trejeitos são nada. Ela não deve passar de uma vagabunda! E tem cara de quem gosta!
Meus olhos estavam mais arregalados que a lua cheia, já era noite e os meus pensamentos seguiram o ritmo, escurecendo. Fiquei atônito, não sabia o que dizer perante aquela coisa repugnante que ele disse. Eu nunca havia imaginado qualquer coisa do gênero, mas as corujas piaram e o rio secou.
And when the owls cry in the night
Oh, baby, baby, when the pines begin to cry
Baby, baby, baby, how do you feel
If the rivers run dry, baby, how would you feel
- Daniel! Você parece um garoto mimado do papai, porque não vai procurá-lo? Ou a mamãe!
- Não tenho pai. Nem mãe.
Silêncio.
Não houve risada. O tom mudou.
- Mais uma tequila para mim, e um café para o jovem.
- Sim, um café.
Olhamo-nos por uns instantes, e neles havia mais palavras que as ditas desde que nos conhecemos, por um momento eu pude escutar a batida do coração dele. Ou seria Four Sticks?
Craze, baby, mm, the rainbow's end
Hoo, baby, it's just a den for those who hide
a-hide their loves to depths of lies
and ruined dreams that we all knew so, babe
- Não é só isso, eu sei. O que mais lhe aflige Daniel?
- Eu a beijei. Ela disse ‘eu não te amo’, fiquei pensando nisso. Agora pouco falei com ele, você sabe... E ele desconfia que ela esteja o traindo. Pediu para que eu observasse, tentasse saber alguma coisa sobre.
- “Eu não te amo”... O que você sabe sobre o que você sente Daniel? E você confia mesmo nela? Se o próprio namorado desconfia...
- Sim! Confio. Ela não faria isso, uma prova é que ela me disse ‘eu não te amo’...
A outra pergunta... Eu não consegui responder, lembrei-me de Novalis quando dizia que o mistério aponta para dentro. Creio que a pior coisa que poderia lembrar, afinal, romantismo.
- Daniel, se as pessoas fossem confiáveis os exércitos eram treinados para a paz, e não para a guerra. É tudo questão de relações de interesses de poder sobre os instintos primitivos de cada um, o controle da massa em idéias é somatório.
And when the owls cry in the night
And, baby, when the pines begin to cry
Oh, baby, baby, how do you feel
If the rivers run dry, baby, how will you feel
Estava ofegante, não sabia o que dizer. Era como se as minhas esperanças, os meus pensamentos, os meus sonhos, as minhas expectativas, tudo fosse nada. A minha única chance de me completar, de não ser seco, fosse nada. Deus! Meu Deus! Eu pedi ajuda, mesmo mudo.
- Daniel, ninguém completa ninguém. Vejo isso nos seus olhos.
A tequila desceu mais um pouco. André ainda tirou algo da jaqueta, sem que eu pudesse responder qualquer coisa.
- Conhece este lugar?
- Não. – era bonito, mas não conhecia. Até virar e perceber que era um cartão postal. Grécia.
- Deve conhecer isto, não?
E me mostrou um bolo de dinheiro, tirou também da jaqueta. Não reconheci a primeira vista, porém...
- Isso são euros!
- Sim, doze mil. Imagino que está totalmente sem dinheiro. Sem trabalho. Você vai conhecer Atenas. Esse dinheiro vai lhe ajudar no necessário lá. Envio a passagem para seu endereço dentro de uma semana, e nesse mesmo período você parte. Sabe falar grego, não sabe?
- Do que está falando? Está louco? Que tipo de gente anda com doze mil euros no bolso da jaqueta?
- O que você sabe sobre o que você sente Daniel?
Não consegui falar mais nada, nem negar. Eu queria ser mais que um Rio, naquele instante eu quis ser uma Jóia do Mar.
Ah-ahh, ah-ah-ahh-ay
Ahh-ahh-ahh, ah-ah, ah-ah
Ahh-ah-ah-ahh, ah-ah, ah-ah, ah
Baby, how do you feel?
- Daniel. Sabe para onde correm os rios? Sabe o que eles se tornam? Está na minha hora. Tenho de ir.
Oh, yeah, brave I endure
Woo, yeah, strong shields and lore
N-they can't hold the wrath of those who walk
in the boots of those who march
baby, through the roads of time so long ago
Ele partiu. Eu também parti, mas ainda sentado. Só com alguns minutos percebi que os jovens também haviam ido embora. Eu fiquei, olhei para a mesa. André havia esquecido a carteira. Não consegui me levantar para casa. Ainda passei um tempo ali, sentado, pensando. A curiosidade me atropelou e eu olhei a carteira, nada além de poucos cartões, e um papel amassado, com uns versos escritos:
“Soneto Cigano”
Não sei quantos necessários oceanos
Que m’inundam e quantos se esvairão
Para matar meu vivo coração
Qu’afunda como nauta dos enganos
Sigo no mundo das trilhas a mão
Dos vales e desertos sou cigano
Se calo há algo que segue falando
Que dores tentam, mas não calarão
Em meus dedos se conservam anéis
Circundam-se caminhos nos meus brincos
Cantam as minhas ilusões cruéis
Pelos meus sonhos de que tanto brinco
O pranto oceânico que me deságua:
São fados: beijos, dor, solidão e mágoa.
Nunca me passou pela cabeça que André Berilo escrevesse coisas do gênero, quiçá poemas. Era o nome dele ao final. E então pensei o quanto humano ele é. Pela primeira vez na minha vida, eu senti que havia, realmente, conversado com alguém...
Voltei para casa, não bebi vodka, nem tequila como Berilo, dessa vez só café.
A noite dormiu, a cafeteria fechou, e jazia na mesa de Daniel Riva três copos de café e poucos guardanapos.
(Por Marcos P. S. Caetano)
Fortaleza, 01h23 de 20 de Dezembro de 2010.
Série Daniel Riva:
Arma de Caça na Cabeça de Daniel Riva
Daniel Riva na Promoção da Semana
A Cara Valente de Daniel Riva
Daniel, Cada um é seu próprio escarro
Please, Daniel, isso é um bom conselho
Daniel Riva entre a Traição e a Esperança
Pintura:
Edvard Munch. Vampiro, de 1897, óleo sobre tela.
Palavra da Vez: