
A noite se deitava na cama bem mais confortada que o próprio rapaz. As duas únicas estrelas do céu daquela cabeça olhavam o breu do lado de fora. O preto que cobria o ambiente cantava apenas a música que vinha da janela da vizinha:
Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Daniel sentou-se. Ouviu o Bom Conselho de Chico Buarque, embora achasse a voz do poeta torta, era o conselho torto que precisava. Nunca reclamou, a sua vizinha amava Chico e passava horas ouvindo. Ele precisava era de alguém que concordasse com as bobagens da própria cabeça dele. E se esse alguém fosse um poeta renomado então...
A sua frente os papéis de contas e mais contas, centenas de reais de dívida e apenas vinte trocados para trocar vida por sobrevivência. Aquele dezembro quente estava esquentando a cabeça do sorumbático.
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
O Google ainda lhe disse todo o currículo de André Berilo. Estava curioso, as palavras daquele homem ecoaram na cabecinha de Daniel. Honras e mais honras ao dito cujo. Não entendia muito como um currículo daquele tinha uma personificação como aquelas palavras. Ou mesmo um cigarro que queimasse mais que pulmões, que queimasse corações. Nada mais nuncupativo.
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Trocados num bolso, cartão no outro. Roupa qualquer, celular na calça. Os pés se puseram a sair da casa como as palavras de Chico se puseram a se calar:
Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
:
- Dani, que surpresa boa!
Não fiz muita idéia do que foi que me moveu até ali, eu não costumava fazer aquilo. Por um momento eu fui como André: o corajoso, o viril; segundo o Google. E queria ser mais que Riva, queria ser Berilo: jóia do mar. Não poderia ficar inerte para sempre, o que diabos são esses rebuliços? Ah! Não, eu deveria ter olhado o que significa Nosce Te Ipsum. Olhei tudo o que ele falou, só me esqueci disso...
- Ah, é o Daniel, amor? Chame-o para entrar.
- Não. Veio só fazer uma visita rápida, logo entro.
- Tudo bem. Mas venha que o filme está para começar, santa, vou terminar os preparativos.
Aqueles risinhos, a felicidade deles me deu três socos mais fortes que a vodka que tomei antes de vir, como é que essa pseudocoragem ainda não foi nocauteada? Ela fechou a porta. Agora somos nós dois, ninguém nessa rua deserta e noturna. O que é que eu faço? Chico! Ah, Chico! Aja duas vezes antes de pensar. Vamos!
So please please please
Let me, let me, let me
Let me get what I want
This time
Não sei se foi Chico, ou se foi The Smiths que cantava da casa dela, só sei que aquele foi as minhas pernas e estes os meus braços, já eu: o beijo.
- Daniel! Não! Eu não te amo... Assim...
E falou mais um amontoado de interjeições, uma progressão geométrica de motivos para aquilo não acontecer e inundações de perguntas de o porquê deu ter feito aquilo. Eu poderia muito bem ter engolido todas aquelas palavras, mas o CD da minha cabeça deve ter arranhado. “Eu não te amo”, a única coisa que me esfaqueou no momento, o resto era movimento de boca. Se eu tivesse simplesmente decodificado a palavra “assim” minha vida teria sido mais leve, no entanto, não eram cinco letras, eram cinco toneladas de significado que eu não tinha forças para carregar nos ombros...
- Daniel? Tá tudo bem?
Nem percebi quando foi que ela entrou, muito menos que a batida da porta foi forte. Mas o cara que a minha mente regurgitava a imagem estava na minha frente.
- Cara. Agora a gente vai ver um filme aqui. Depois a gente se fala, eu queria mesmo conversar com você... Depois te ligo e te pago um café numa tarde dessas. Falô!
“Eu não te amo”, minhas pernas que vieram com Chico voltaram com Please, please, please let me get what I want e dois litros de vodka com o resto de trocado que eu tinha:
Haven't had a dream in a long time
See, the life I've had
Can make a good man
Turn bad
Depois de ter tropeçado algumas vezes, me escorado em postes de luz outras, me arrastado mais algumas, tudo isso pelo caminho, cheguei, estava em casa. Talvez aquilo fosse tudo que eu sempre quis, tudo que nós sempre queremos. Isso era a ressaca da vida. A pouca coordenação que a vodka me deixou serviu pra mandar um torpedo para André, e, por favor, por favor, por favor, não me pergunte o motivo. Ah, eu respondo... Será que ele já passou por isso? Ou... Dizem que o amor muda muito o rumo das pessoas, penso que a falta de amor mude muito mais...
Eu juro: antes de fechar os olhos ainda procurei alguma coisa castanha para olhar.
(Por Marcos P. S. Caetano)
Fortaleza, 02h04 de 6 de Dezembro de 2010
Série Daniel Riva:
1º
Arma de Caça na Cabeça de Daniel Riva
2º
Daniel Riva na Promoção da Semana
3º
4º
Daniel, cada um é seu próprio escarro
Pintura: Edvard Munch, Separação: de 1896. Óleo sobre tela.
Palavras da vez:
sorumbático
(origem controversa, provavelmente relacionado com sombra)
(latim nuncupativus, -a, -um, chamado, nominal)
"Eu não te amo" dói demais, é uma facada no sentimento que não para de sangrar, parece que o ar deixa o nosso respirar, tudo fica sem direção num mundo cão. Chico aconselha muitas pessoas com suas músicas, tudo nele tem uma sensibilidade fora do normal. O cara é um gênio da música brasileira.
ResponderExcluirQue seu dia seja iluminado, Marcos.
Rebeca
-
Chico é o cara que recita sentimentos que nem a alma consegue suspirar! Ele vai lá e arranca.
ResponderExcluirSou suspeita.
Sou suspeita tambem pra te elogiar,Caetano!
rs
Um abraço!
"...Se eu tivesse simplesmente decodificado a palavra “assim” minha vida teria sido mais leve..."
ResponderExcluirVocê, dando-me de comer todos os dias.
"Dizem que o amor muda muito o rumo das pessoas, penso que a falta de amor mude muito mais..."
ResponderExcluirSinto-me descontroladamente inclinada a concordar com vc Marcos: Amor, aquele sentimento que fere e ao mesmo tempo é capaz de fazer cicatrizar um coração!!!
Este seguimento de textos lembra-me alguns anos estranhos de minha vida, em cada um você deixa pairar um suavismo, um algo mais sublime e fresco de juventude.
ResponderExcluirGostei da citação de The Smiths.
"I was happy in the haze of a drunken hour
But heaven knows I'm miserable now
"You've been in the house too long" she said
And I (naturally) fled"
abraços
Marcos!!!!!!!!
ResponderExcluirque texto, digamos, misterioso. Quando você escreve tudo soa tão pessoal. Vejo que há algo de um bom mistério aqui.
Seu texto misterioso traz o cotidiano, queria eu, ser a vizinha que escuta Chico.
ResponderExcluirParabéns pela criatividade.
Intenso é a palavra para os seus textos...
ResponderExcluircontinue assim, querido!