
“Daniel, cada um é seu próprio escarro”
Todos os decibéis estavam excitados. A guitarra dava as boas vindas aos que adentravam o quarto. O baixo seguia o ritmo dos passos, do fechar e trancar da porta, do gelo eriçado no copo de tequila. E Robert Plant balança como limão na bebida, até descer como poesia marginal na garganta:
You need cooling
Baby, I'm not fooling
I'm gonna send, yeah
You back to schooling
Era dia de Whole Lotta Love. E o Led Zeppelin era a fumaça do cigarro cantando.
- Aqui está bom?
O copo voltou para a mesa, assim como a jaqueta se refestelou na cadeira. O par de sapatos pretos se aproximava. Os oito brincos estavam na orelha só escutando. Os aquilinos olhos miraram o alvo. A mão e os seus cinco dedos foram o rasante. O cabelo foi segurado como o rabo de uma égua. O balbuciar da moça foi só até ela ser jogada na mesa, os objetos se esparramaram pelo chão. A tequila caiu e molhou A Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud e uma caderneta com a seguinte citação: “A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.” Também de Freud.
Way down inside
Honey, you need it
I'm gonna give you my love
I'm gonna give you my love
Se ela tentou falar algo como “professor”, foi pra dentro. Estava de recuperação. O cinturão preto deixou de segurar as calças daquela aparição para virar mordaça; ou rédea? A batida da bateria seguia o ritmo dos tabefes. A pele que era branca ficara vermelha, o sangue saia do profundo para o raso da alma. As mãos rasgavam a pele e o suor transpirava como a morte.
Wanna whole lotta love
Wanna whole lotta love
Wanna whole lotta love
Wanna whole lotta love
Se ela tentou balbuciar algo como “professor” recebeu um “cala a boca vadia”. Naquela noite só Robert Plant gemeu, ela ficou calada, calada.
You've been learning
Baby, I been learning
All that good times
Baby, baby, I've been yearning
Way, way down inside
Honey, you need it
Ele a olhou milímetro a milímetro. Rasgou-lhe a saia. Abriu-lhe as pernas. Ela estava de bruços na mesa. E ele seguiu o ritmo da música:
Way, way down inside
I'm gonna give you my love
I'm gonna give you
Every inch of my love, gonna give you my love
As ânsias mentiam o caráter. O eu mentia o mundo. E todas as polegadas de hipocrisia rasgavam o tesão da ideologia. E todo o apartamento cantou:
Way down inside
Woman you need love
Shake for me girl
I wanna be your backdoor man
Sentou-se. A poltrona ainda a observou se ajustar. “Minha saia”, se ela perguntou isso logo recebeu um “Cai fora daqui sua puta”, além de umas cédulas. Ela ainda deve ter perguntado “Mas e o exame?”. “Cai fora daqui sua vagabunda”. Mas ela precisava de uma boa nota na disciplina de Direito Romano, com o Professor André Berilo. Naquela noite ele aplicou o exame. Ela saiu sem saber a nota. O ambiente continuou com o cheiro do vulgar. Ele ainda terminou com a tequila e o cinzeiro lotado, a fumaça ainda sussurrou:
Keep it cooling baby
Keep it cooling baby
Keep it cooling baby
Keep it cooling baby
: Daniel deitado no seu quarto ainda pensou como pensou na boate “Como deve ser um dia de André Berilo? Deve ser melhor que o meu...”. Olhava aquele cartão com o nome do Advogado e Professor de Direito, além de começar a lembrar de alguns outros trechos da conversa. “Vai ficar aí olhando a moça dançar com o cara? É, se você não faz algo na vida vem outro e faz. Larga essa cara de pamonha, Riva. Você nem a conhece...” Era um imbecil mesmo aquele careca, como veio dizer na minha cara que eu não conhecia uma amiga de longa data? Ele que não deve se conhecer... Porém, nessa vida deve mesmo ter um momento onde perdemos a nossa religião, e Daniel se lembrou de outra de André: “Você não a conhece. Para conhecer uma pessoa, Daniel, você não precisa trocar uma palavra com ela. Vá trepar com ela e saberá tudo da alma dela.”.
Berilo em um canto da cidade. Riva em outro. Depois das músicas ambos silenciaram. Daniel fechou os olhos e teve um sonho castanho. Berilo teve insônia e com seu cigarro a esquentar seu coração ainda leu os Versos Íntimos de todas as almas com Augusto dos Anjos, declamou para si:
Vês ! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera !
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro
A mão que afaga é a mesma que apedreja
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga
Escarra nessa boca que te beija
Cada um seu próprio escarro, sua própria loucura, sua própria sanidade, sua própria felicidade.
(Por Marcos P. S. Caetano)
Fortaleza, 01h50 do 1 de Dezembro de 2010.
Série Daniel Riva:
1º
Arma de Caça na Cabeça de Daniel Riva
2º
Daniel Riva na Promoção da Semana
3º
Palavra da Vez:
quimera (é)
(grego Khímaira, -as, Quimera, ser mitológico, dekhímaira, -as, cabra jovem)