Nosce te Ipsum

"Um quadro só vive para quem o olha" - Pablo Picasso

(Nosce te Ipsum)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

"Seol da Amizade"



“Seol da Amizade”


A grama era verde e alimentada por sonhos mortos, as árvores tinham mais vida que os que por elas passavam. Tudo aqui sempre é colorido, como se as flores fossem os balões de uma festa, porém, os convidados monocromáticos só enxergam as coisas em preto e branco. Eles vêm com as suas mãos cheias de cárceres para passá-las na morte como quem brinca com a sorte. Seus olhos de lápides são o outdoor da tristeza. Os sinos são os fogos da festa e o silêncio ululante a música de fundo. O morto é a estrela da tarde.


Todos deveriam ter um sepultamento digno como aquele, pois é a maior das nossas celebrações. É o adeus da autonomia da alma, tão mortal quanto o corpo. E toda aquela gente ali reunida, todos celebrando um fim velado de eternidade. Desciam o seu dito amigo ao Seol* para não mais voltar. Guardavam-no como se um dia ele fosse acordar de um sonho, enquanto muitos vivos não têm tão boas condições de dormir.


Como W. H. Auden, todos já haviam parado os relógios e desligado os telefones, todas as carpideiras carpiam um Fúnebre Blues. Até os vermes estavam preparados para a festa, queriam o seu desjejum. Prontos para desembalar o corpo e comer a alma, esta a vela aquele o bolo. Mas a alma já não era do morto.


As pessoas então carpiram o egoísmo e os traumas no caixão, o morto desceu com mais pesar que quando morreu. As lágrimas foram o cimento que deu firmeza ao ataúde. Como qualquer morto quando morre ele desceu ao inferno dos sofrimentos alheios.


É bonito chorar e é bonito sofrer. Todos ali estavam belos: a beleza deles é um necrotério de corpos dissecados. E a felicidade do morto um genocídio de felicidades alheias...


Procurei um sorriso perdido, encontrei um único, embora molhado, era um sorriso de algum amigo. O nosso corpo tem a sepultura no mundo, já a nossa alma nas outras almas. Enquanto o cemitério do corpo é a cidade, o cemitério da alma é a amizade.


O morto desceu como quem realiza um sonho e os outros ficaram como quem não sabe partilhar do sonho amigo. Talvez aquele sorriso tenha entendido a Lápide que cita Cícero em A Amizade:


“Quocirca maerere hac ejus eventu vereor

Ne invidi magis quam amici est”


O sorriso saiu e deixou os prantos por lá, e pensou como uma laje sepulcral: “Receio que lamentar aquela perda seja mais inveja que amizade”.


(Por Marcos P. S. Caetano, 14h07 de 17 de Novembro de 2010)




*Seol:

Sheol, Xeol ou Seol, (pronunciado "Sheh-ol"), em Hebraico שאול (She'ol), é o "túmulo", ou "cova" ou "abismo".

No Judaísmo She'ol é o local de purificação espiritual ou punição para os mortos, um local o mais distante possível do céu. De acordo com a maior parte das fontes judaicas, o período da purificação ou punição é... (Para mais informações sobre Seol, só clicar)


PS: Imagem do Filme Quatro Casamentos e um Funeral, que cita o Poema Fúnebre Blues de Auden.


Palavra da Vez:


morte
s. f.
1. Acto! de morrer.
2. O fim da vida.
3. Cessação da vida (animal ou vegetal).
4. Destruição.
5. Causa de ruína.
6. Termo, fim.
7. Homicídio, assassínio.
8. Pena capital.
9. Esqueleto nu ou envolto em mortalha, armado de foice, que simboliza a Morte.
de má morte: que não presta para nada.
de morte: de modo a causar a morte (ex.: ferido de morte). = letalmente, mortalmente
de modo muito intenso. = intensamente, profundamente
que causa morte. = letal, mortal
que é intenso (ex.: ódio de morte).
que é muito engraçado (ex.: aquele gajo é de morte)
morte civil: estado do que perde todos os seus direitos civis por pena infamante.
morte natural: não violenta.
pensar na morte da bezerra: estar distraído.

3 comentários:

  1. Vim visitar o teu desassossego. E sendo assim, desassossegar-me também. Provar das tuas palavras mais que a noite. Roer letras e verbos feito verme. Rasgar esse escuro da terra e encontrar descanso nessas outras almas em desalinho. Alimentar-me destes versos que guardam essa fome que não cessa nunca e nos faz seguir.

    Obrigada pelas palavras e pelo compartilhar.

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  2. Como sempre seus belos textos;o egoísmo,essa camisa de força que vestimos todos os dias,quem veste egoísmo veste todos os males do mundo,que d verdade veste a camiseta do mundo veste amor,nosso mundo vive revestido dessa camisa de força,mas sempre encontramos alguém de camiseta...

    Um Abraço!

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  3. (Ego)ismo..Sismo mas..Eis nossa materia Bruta
    -
    -
    "amor proprio excessivo" uma Doença do ser||humano
    ..
    A cura//Musica
    Como Dizia Novalis
    “Toda doença é um problema musical.”





    PS:Fui alem, rs
    Sds

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