Nosce te Ipsum

"Um quadro só vive para quem o olha" - Pablo Picasso

(Nosce te Ipsum)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Daniel Riva entre a Traição e a Esperança


"Daniel Riva entre a Traição e a Esperança"

Sempre gostei de tardes nubladas. E essa me parecia das melhores. Não sei, mas o castanho das árvores me parece tão mais bonito nessas tardes, feito cabelos úmidos, ou olhos emotivos. Enfim... O silêncio daquela cafeteria ao ar livre começava a conversar com o som de um radinho de pilha duas mesas depois da minha:

Como todos cantaram, eu também não poderia deixar de cantar. Lá menor! Serra da Boa Esperança.

Violão, cavaquinho, pandeiro e flauta começam a cantar.

Grande Lamartine Babo, um dos sambas mais bonitos da música popular brasileira.

Ainda pude ver um casal de cabelos branquinhos de amor numa mesinha próxima, ambos suspiraram e de um deles ouvi: “Ótimo na voz do Altemar Dutra”, definitivamente eu não era o único que prestava atenção naquele velinho que segurava o radinho de pilha, com suas mãos trêmulas de certeza, seus olhos de angústia escondidos por óculos-escuro de luto pela vida, suas rugas de desgraças, sua boina de nostalgia em cima da mesa cinza de complacência, suas roupas mortas no tempo de décadas atrás, seus poucos fios de cabelo de instantes de felicidade, todos caducos como a boa esperança. Tinha cara de quem era de Minas, será que aquele velhinho esguio e franzino era da Serra da Boa Esperança?

Serra da Boa Esperança

Esperança que encerra...

No coração do Brasil

Um punhado de terra

No coração de quem vai. . .

No coração de quem vem

Serra da Boa Esperança

Meu último bem

Por um momento tive medo de a esperança ser meu último bem...

- Daniel, tá tudo bem?

Só depois percebi quantas vezes fui perguntado disso, não entendia o motivo de perguntar incessantemente. Ele estava ali, na minha frente. Eu não conseguia reconhecê-lo, a imagem dele parecia perdida no tempo em que éramos meninos e jogávamos bola no meio da rua de paralelepípedo. Sentia saudades daquele tempo, meu amigo, mas estávamos perdidos um do outro. Estávamos ali, para o café que ele havia convidado. Em verdade, para o que ele queria falar...

Parto levando saudades

Saudades deixando

Murchas, caídas na serra

Lá perto de Deus

- Estou angustiado, Daniel, não sei o que faço...

Não me lembro bem do que ele falou antes de chegar à frase de agonia, deve ter falado sobre como é bom me ver, o que eu não poderia dizer o mesmo. Não conseguia entender quando foi que eu parei de enxergar aquele meu amigo de pele morena do sol, cabelos curtos e castanhos claro, olhos negros, boca fina e nariz agudo; não sei, ele parou com menos de um metro e meio na minha memória. Eu amava aquele menino, hoje não consigo reconhecê-lo.

Levo na minha cantiga

A imagem da serra

Sei que Jesus não castiga

Um poeta que erra. . .

Nós os poetas erramos

Porque rimamos também

Os nossos olhos

Nos olhos de alguém

Que não vem...

Os nossos versos eram brancos, a nossa rima falha. Os seus gestos eram de pura agonia, transtorno; e eu não acreditava como ele ainda confiava tanto em mim, amava-me? Ainda? Como pode o amor morrer só de um lado? O amor não é uma avenida de mão dupla?

- Acho que ela está me traindo, Daniel...

Os olhos dele estavam vermelhos e lacrimosos feitos os sentimentos dentro de mim. Não conseguia entender que ele me falava aquilo, precisei ouvir mais vezes que as vezes que ele me perguntou se eu estava bem...

- Acho que ela está me traindo, Daniel... Preciso de sua ajuda... A santa... Pode me ajudar? Tentar saber? Falar com ela? Sondar?

Olhei para os lados como quem procura solução, salvação, e só encontra descrença, surpresa e desesperança no meio do amor de dois velhinhos na Serra da Boa Esperança. Não! Ele veio pedir aquilo pra mim! Justo depois do beijo! Mas não poderia ser comigo, não... Mas... Não acreditava que ela poderia fazer isso, deveria ser coisa da cabeça dele. E só então consegui reagir...

- Obrigado, Dani. Sempre soube o quanto somos amigos, sempre soube que sempre poderia contar com você, em qualquer situação... Foram ótimas essas horas, esse café. Preciso ir, está na minha hora. E isso é pra lhe ajudar, não se esqueça disso... Procure ajuda meu amigo, não pode ficar assim...

Ignorei muito do que ele falou, assim como sua imagem que se anuviava pela esquina naquela tarde nublada, tudo pela idéia da traição entre eles. Eu não sabia se choveria ou se o Sol apareceria. No entanto, eu me reconfortei de como o castanho das árvores era bonito. Não tive muito problema em aceitar a esperança dentro de mim, a que talvez ela não o amasse... Como eu poderia?! Não poderia deixar a felicidade nascer em mim pela desgraça deles... Mas se ela o traísse... E eles se separassem... Não! Ah! Melhor eu mudar meus pensamentos, depois penso sobre isso... O “eu não te amo” dela ainda me martela, espero que André chegue logo. Ao menos ajustarei tudo no mesmo dia, marquei com os dois e espero que as duas conversas dêem certo; uma já deu.

Serra da Boa Esperança

Não tenhas receio

Hei de guardar tua imagem

Com a graça de Deus

Ó minha serra eis a hora

Do adeus vou-me embora...

Deixo a luz do olhar

No teu luar

Adeus. . .

Para onde foi o velhinho da serra da boa esperança? Só senti o vulto das últimas notas. Ah, até o casal branquinho já se vai. Como são bonitos. Será que o cabelo deles era castanho? Hei de um dia deixar o castanho da paixão virar o branco do amor e ter com meu amor um dia de boa esperança. Ah, eu também disse adeus...

E virando a esquina vinha André Berilo, vamos tomar café e conversar.

Antes que ele chegasse ainda vi ao longe o velhinho, notei que tinha uma muleta e pedia ajuda para atravessar a rua, deveria ser cego. Voltava com sua cegueira de saudade para a esperança.

André sentou, e começamos a conversa...


(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 01h38 de 11 de Dezembro de 2010.



Série Daniel Riva:


Arma de Caça na Cabeça de Daniel Riva

Daniel Riva na Promoção da Semana

A Cara Valente de Daniel Riva

Daniel, cada um é seu próprio escarro

Please, Daniel, isso é um bom conselho





Pintura: Óleo sobre tela. Sem Título de Roberto Burle Marx, De 1987.








Palavra da vez:

traição
s. f.
1. Acto!Ato ou efeito de trair.
2. Perfídia.
3. Entrega aleivosa.
4. Quebra aleivosa da fé prometida e empenhada.
5. Infidelidade conjugal.
6. Emboscada desleal; surpresa vil.
à traição: traiçoeiramente, aleivosamente.
Pelas costas, à falsa fé.

trair (a-í)
(latim trado, -ere)
v. tr.
1. Enganar com traição. = atraiçoar, falsear
2. Revelar informação que era secreta. = delatar, denunciar
3. Deixar perceber. = revelar
4. Não cumprir promessa, compromisso ou princípio.
5. Ser infiel a.
v. pron.
6. Revelar (o que se desejaria ocultar). = descobrir-se

8 comentários:

  1. Esse imaginário. Os trechos musicais em que você nos envolve no texto ficam muito bem aplicados ao assunto, isso soa muito agradável, hehe mais um "artimanha" do suavísmo.
    Bem, resta esperar sobre a conversa.

    grande abraço e bom dia

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  2. ("os quadros que mais precisam de título não o possuem..." lembra?)

    não conhecia essa música. gostei muito.
    como também do 'casal de cabelos branquinhos'
    e do velhinho, com suas 'rugas de desgraça' e 'cabelos de instantes de felicidade'

    daniel, seja receoso nessa próxima conversa.

    abraços e beijos (esses para marcos).

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  3. Interessante esse Daniel Rivas... sempre bem acompanhado de música e poesia... ele ama alguem? algum homem? mulher seria interessante para ele? não li os outros contos ainda... mas pretendo...

    Abraço, meu amigo!
    Até qualquer velha esquina da vida!

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  4. É tão real, no sentido sublime e gracioso da palavra. Espontâneo, jovem, porém, não imaturo ou mal pensado.
    Este blog está se tornando uma doce obrigação.


    bjns!

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  5. Desculpe-me pela demora, ando sm tmpo ultimamente.

    Passando para agradcer e retribuir a visita e a participação.

    Sempre será muito bem vindo.

    Um beijo.


    http://cabecafeminina.blogspot.com/

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  6. Olá, vim avisar que estou saindo de férias do meu blog e retorno em janeiro. Antecipadamente queria desejar um feliz natal e um 2011 repleto de felicidades. Assim que for possível, estarei tirando alguns momentos para ler seus posts este fim de ano.

    abraços fraternos

    http://terza-rima.blogspot.com/

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  7. Caetano, meu querido, sinto que vou demorar um pouquinho para entender qual é a do Daniel Riva. Mas essa linguagem de alternar texto e letra de música é algo arriscado que você fez muito bem!

    A minha dica fica mais quanto à fonte da letra. Acho que essa fonte não favorece muito a variação do itálico ao normal.

    Abraço

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  8. Seu texto é rico meu querido, fiquei preso pelas suas palavras, a esse suposto amor de amante... A essa mística por onde se esconde Daniel Riva e a sua esperança.

    muito bom!

    abraços

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