Nosce te Ipsum

"Um quadro só vive para quem o olha" - Pablo Picasso

(Nosce te Ipsum)

sábado, 20 de novembro de 2010

Arma de Caça na cabeça de Daniel Riva



“Arma de Caça na cabeça de Daniel Riva”

Lá estava ela, desfilando no vento. E ela se dirigia a mim com passos de sorriso, os mesmos sorrisos que passeiam pela minha lembrança de dias afáveis, os dias que passaram por mim com benquerença e ternura, dias de minhas verdades. As mãos balançavam com o mesmo ritmo das ondas que um dia observamos do mar. Os castanhos cabelos o vento fazia questão de passear os dedos e de me dar ciúmes castanheiros. Aqueles olhos grandes e doces tais quais os chocolates negros que tantas vezes comemos juntos, eles piscavam e os cílios acenavam para mim como incontáveis vezes ela me acenou. A boca volumosa e com certo corte no meio, como se Michelangelo houvesse esculpido, seguia serena como se nunca precisasse falar algo, afinal nossos pensamentos caminhavam como uma única linguagem, as nossas palavras eram sincronizadas como os artistas de uma peça de teatro que algum dia nós presenciamos, fazendo arte nos davam risos, choros, rubores e amores. Aquele narizinho de batata me rememorava todas as brincadeiras tolas dos dias, aquelas que brincamos para suportar o peso das coisas. Ela não era perfeita, eu estava feliz por isso, ao menos uma única vez. Era minha amiga.

- Santa!

Aquela era uma voz que meus ouvidos faziam questão de não decodificar. Ela virou o rosto e o viu. Era assim que ele a chamava, de santa, a mais sagrada. E fora eu que um dia a apresentei a mais bela tradução dela mesma. Mas o tempo pesa na palavra. E Furtados de atenção foram os olhos dela, embora os dedos e a mão esticada em minha direção fossem o suficiente para mim, como se o corpo precisasse seguir o caminho, e seguir o caminho sempre me confortou, qualquer que fosse a estrada. Volveu para mim e deu de ombros, como se já soubesse que eu não fosse impor empecilho algum para que ela se retirasse com aquele que ela chama de amado. Então foi embora, sem mesmo chegar a me cumprimentar, era desnecessário, e nós dois sabíamos.

Dei as costas e voltei para o meu rumo, preferia que o silêncio houvesse imperado em mim, mas aquela palavra santa imperou no silêncio. Eu era como diria certa Pessoa: Uma catedral de silêncios eleitos. Naquele dia não pude distinguir as roupas dela, apenas o seu movimento, o que vestia o seu ser. Não olhei sandália, brinco, pulseira ou blusa, apenas as memórias de cada momento bom que ela levava nos pés, nas orelhas, nos braços e no peito. O riso que sempre quis rir, ou mesmo gargalhar. Eu era a minha piada.

Sentei no meio do meu rumo. Senti como se não fosse aquele tempo, até pude ver um menestrel qualquer a entrar com seu bandolim. Não. Eram os bytes que cantavam Beirut em Elephant Gun:

If I was young, I'd flee this town
I'd bury my dreams underground
As did I, we drink to die, we drink tonight

Naquela noite bebi qualquer coisa de que não me lembro, mas funcionou: não sonhei ao dormir. O trompete anunciou que talvez eu tenha bebido esquecimento. Infelizmente não bebi o bastante. Escrevi alguma coisa em algum guardanapo, apenas o nome: Daniel Riva. Apenas o nome era legível. Era o meu nome. Vi-me através do espelho, lembrei-me de que certa vez soube que Daniel significava “Deus é meu juiz” e Riva “Rio”. Dos rabiscos que escrevi não importa o que me fez dizer, importa o que se fez ouvir. Como música:

Far from home, elephant gun
Let's take them down one by one
We'll lay it down, it's not been found, it's not around

A bala disparou, e mesmo assim a minha memória não cessou.


(Por Marcos P. S. Caetano)

Fortaleza, 20h45 de 20 de Novembro de 2010





Pintura: Claude Monet - Le bateau atelier

Palavra da Vez:


memória

(latim memoria, -ae)
s. f.
1. Faculdade pela qual o espírito conserva ideias ou imagens, ou as readquire sem grande esforço.
2. Lembrança.
3. Monumento comemorativo.
4. Nome, fama (que sobrevive à pessoa ou ao facto).
5. Recordação, presente.
6. Dissertação literária ou científica.
7. Anel (que se dá como lembrança).
8. Nota diplomática.
9. Memorial, renovamento de pedido.
10. Gal. Relatório.
11. Inform. Órgão do computador que permite o registo, a conservação e a restituição dos dados.

memórias
s. f. pl.
12. Escrito narrativo em que se compilam factos, anedotas, etc.
13. Autobiografia.
14. Infrm. Cumprimentos.
de memória: de cor.
de toda a memória dos homens: de tempo imemorial.
fazer de memória: nomear, citar.
fugir da memória: esquecer.



6 comentários:

  1. Lmebrei dos jogos de RPG..

    poooo, tah sei nada ver..
    mas essas historinhas me fizem lembrar
    que vc eh um bom orador


    ashaushaushaushau

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  2. Olá, meu caro Marcos

    EXcelente seu texto, de uma riqueza e de uma sabedoria que meus olhos comeram a sua escrita. "Dei as costas e voltei para o meu rumo, preferia que o silêncio houvesse imperado em mim, mas aquela palavra santa imperou no silêncio. Eu era como diria certa Pessoa". É sem dúvida o que um certas Pessoa diria!

    Parabéns meu caro, muito, mas muito bom o seu texto!

    abraços

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  3. Sou sua fã.

    Dispersarei tamanha sabedoria enquanto puder!

    Bjo!

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